Duas pesquisas da KPMG nos convidam a uma reflexão importantíssima: as empresas brasileiras estão, sim, ampliando a adoção de canais de denúncia, mas isso está longe de ser o bastante para eliminar o assédio e a discriminação no ambiente corporativo.
Essas ferramentas são apenas o começo de uma jornada que, para ser bem-sucedida, exige engajamento em todas as camadas da estrutura corporativa e mudanças profundas na cultura organizacional.
Um desses materiais é a quarta edição da pesquisa Perfil do Hotline no Brasil. Segundo o levantamento, a maioria das empresas já disponibiliza algum tipo de canal de denúncia. No caso das participantes do estudo, o hotline está presente em 93% delas. Esse dado é muito significativo, pois demonstra a consolidação desses mecanismos como uma peça-chave nos programas de compliance.
Emerson Melo, sócio-líder da prática de GRC, Forensic & Litigation da KPMG no Brasil e colíder na América do Sul
Carolina Paulino, sócia de Forensic & Litigation da KPMG no Brasil.
Contudo, ao aprofundar a análise, surgem questões incômodas. Por exemplo, 85% das denúncias ainda são feitas de forma anônima. Isso pode refletir a eficiência do sistema, mas é revelador quanto ao receio dos colaboradores em enfrentar retaliações ou em confiar plenamente no compromisso da empresa em resolver as questões levantadas.
Outro dado importante é que 45% das organizações registraram mais de 120 denúncias em um ano. Embora essa frequência indique que os canais estão sendo utilizados, é um alerta sobre a quantidade de problemas internos que persistem em um ambiente corporativo que poderia ser mais seguro.
Também merece destaque o fato de 84% das operações/gestão de hotline serem realizadas por terceiros. Por um lado, essa participação externa pode ser positiva em termos de imparcialidade; por outro, levanta questionamentos sobre a capacidade das empresas de integrarem internamente uma cultura de ética e transparência.
Vítimas evitam fazer denúncias
Já o Mapa do Assédio no Brasil 2024 apresenta um cenário que é ao mesmo tempo preocupante e revelador. Entre os 500 entrevistados, 30% afirmaram ter sofrido algum tipo de assédio nos últimos 12 meses, sendo que 92% das vítimas não relataram os casos! Aqui, a desconexão entre a presença de canais de denúncia e a percepção de segurança dos profissionais fica evidente.
Não é exagero afirmar que as organizações precisam ir além da criação de canais de denúncia. Embora a legislação seja clara — o assédio sexual é crime, conforme o artigo 216-A do Código Penal, e o assédio moral é abordado pelo artigo 146-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) —, o cumprimento de normas legais deve ser apenas o ponto de partida.
Os resultados de ambas as pesquisas não deixam dúvidas: há um longo caminho a percorrer na construção de espaços de trabalho mais seguros, diversos, inclusivos, saudáveis e propícios ao pleno desenvolvimento de todos.
A mitigação de comportamentos inadequados e o combate ao assédio precisam ser prioridades estratégicas para qualquer empresa que aspire a um ambiente ético e seguro. Mais do que cumprir leis, é necessário possibilitar condições para que as pessoas se sintam valorizadas e protegidas.
Investir em canais de denúncia e em boas práticas de compliance são passos na direção certa, mas insuficientes. As empresas precisam ir além do básico, transformando essas iniciativas em parte de uma cultura organizacional robusta e inclusiva.
Prevenir e combater o assédio é uma escolha estratégica que afeta o bem-estar dos colaboradores, a reputação da empresa e a forma como stakeholders enxergam a organização e com ela se relacionam.