O estudo “Reimaginando a resiliência do sistema alimentar global”, da KPMG, parte de uma constatação clara: a alimentação é um dos pilares mais críticos para a estabilidade social, econômica e ambiental do planeta. Mais do que agricultores e empresas do setor, toda a economia precisa estar envolvida na construção de sistemas alimentares resilientes.
Durante a pandemia, muitas fragilidades foram expostas. Para milhões de pessoas que nunca haviam enfrentado insegurança alimentar, as prateleiras vazias revelaram a fragilidade de cadeias globais complexas. Para quem sempre viveu a realidade da fome, os desafios se tornaram mais duros. O momento não deixava margem para dúvidas: no mundo inteiro, governos e empresas precisariam revisar suas estratégias de abastecimento para nunca mais enfrentarem algo semelhante.
Porém, os riscos não ficaram no passado. Hoje, a resiliência alimentar sofre pressões exercidas por múltiplos fatores: degradação ambiental, mudanças climáticas, perda de biodiversidade, tensões geopolíticas que afetam rotas comerciais, aumento do custo de energia e até o avanço de doenças crônicas, como obesidade e diabetes.
Nos últimos séculos, a humanidade conseguiu elevar a expectativa de vida; paradoxalmente, a qualidade da saúde diminuiu. A oferta abundante de calorias baratas não se traduziu em nutrição adequada. O desafio é transformar esse paradigma: de quantidade para qualidade, de acesso desigual para equidade.
Ou seja, o sistema alimentar global vai muito além do prato. Ele conecta solo, água, ar, oceanos, saúde pública, transportes, comércio e até mesmo estabilidade política.
Alavancas para o futuro
Os mais de 200 líderes globais de setores como agricultura, tecnologia, saúde, finanças e energia ouvidos pela KPMG apontam aquelas que seriam as “as alavancas para o futuro”, com foco em reimaginar o sistema alimentar sob a perspectiva de assegurar sua resiliência em escala global. Veja os destaques:
Água sob estresse: mais da metade da população global já vive em áreas com estresse hídrico. Cultivos intensivos em água podem não ser viáveis em médio prazo, exigindo inovações em eficiência e reuso.
Os efeitos das mudanças climáticas não são projeções futuras: eles já remodelam a produtividade agrícola e a estabilidade de cadeias de suprimento.
Subsídios que distorcem: os subsídios ajudam a sustentar agricultores e a manter uma certa estabilidade no campo. No entanto, o uso intensivo dessas políticas podem desincentivar práticas sustentáveis e criar distorções de preço.
Riscos microbianos: a resistência antimicrobiana e as doenças zoonóticas representam ameaças crescentes à saúde e ao comércio global.
Tecnologia como catalisador: inteligência artificial (IA), gêmeos digitais, blockchain e agricultura de precisão são apontados como aceleradores indispensáveis.
Essas alavancas convergem em uma conclusão: não haverá resiliência alimentar sem inovação, colaboração intersetorial e realinhamento de incentivos.
Perguntas que conselhos precisam responder
O estudo propõe um guia prático para conselhos de administração e líderes empresariais, com perguntas-chave que abrangem desde a compreensão de dependências críticas até a alocação de capital em novas oportunidades. Entre elas, vale ressaltar:
Como as falhas em sistemas alimentares críticos podem impactar nossas operações e os retornos financeiros?
Estamos preparados para incorporar cenários de novos futuros alimentares em nosso planejamento estratégico?
Estamos explorando bioenergia, biomateriais e economia circular como formas de diversificar os negócios e obter mais resiliência?
Essas questões deslocam a pauta alimentar do nível operacional para o centro da estratégia corporativa – e é importante enfatizar que reimaginar o sistema alimentar não é uma responsabilidade restrita aos agricultores e/ou aos organismos multilaterais.
Empresas de todos os setores têm um papel a desempenhar nessa jornada, seja por meio de supply chain, seja pela energia que consomem, pela maneira como alocam capital ou pela sua capacidade tecnológica.
É hora de agir!
Sistemas alimentares resilientes são aqueles capazes de oferecer alimentos nutritivos, a preços acessíveis, em quantidade suficiente para suprir a demanda e produzidos de modo sustentável. Essa visão exige colaborações efetivas, envolvendo os agentes da cadeia alimentar e os setores que estão historicamente distantes do debate.
A boa notícia é que o caminho está delineado: há tecnologias, mecanismos de financiamento e modelos de governança prontos para serem escalados. O que falta é uma consciência a respeito da urgência dessa pauta e ambição para ir em busca de respostas que satisfaçam às demandas da sociedade.
A alimentação não pode mais ser tratada como tema setorial, pois se trata de um alicerce essencial, sobre o qual repousam a saúde das pessoas, a estabilidade das nações e a sustentabilidade do planeta.
Fernando Gamboa
Sócio-líder de Consumo e Varejo da KPMG no Brasil e na América do Sul
Felipe Salgado
Sócio-diretor líder de Descarbonização da KPMG no Brasil