Guilherme Tocci
Sócio-diretor líder de Legal Operations da KPMG no Brasil
Já faz um tempo que algumas funcionalidades inerentes às ferramentas de inteligência artificial (IA) são exploradas pelos departamentos jurídicos das empresas. No começo, o foco era a automação de tarefas repetitivas, como a triagem de documentos e a revisão de contratos. Agora, porém, a IA está assumindo um papel cada vez mais estratégico.
A análise “Dos dados ao conhecimento”, realizada pela KPMG com 1.390 tomadores de decisão em oito países e setores, aponta que o setor jurídico está diante de uma nova inflexão tecnológica. À medida que a IA se desenvolve – e isso acontece a uma velocidade muito rápida! –, ela vai além da execução de tarefas e começa a “pensar junto”, gerando valor preditivo, orientando decisões e, sobretudo, alinhando-se às prioridades centrais do negócio.
Esse movimento não ocorre no vácuo. A pressão por eficiência, a escassez de recursos e a necessidade de maior previsibilidade exigem que setores jurídicos atuem de forma mais integrada ao core business. Nesse contexto, a IA emerge como catalisadora de uma transformação que vai além da tecnologia.
Mais da metade (51%) dos entrevistados que participaram do estudo da KPMG dizem já perceber um impacto significativo da IA nos departamentos jurídicos de suas empresas; além disso, 33% consideram esse impacto “alto” e 18% o classificam como “transformador”.
Esses percentuais reforçam a convicção de que o avanço é real, embora permaneça incipiente em muitas empresas. A mensagem implícita é clara: resistir ao avanço tecnológico não é uma opção viável. Por isso, o melhor a fazer é aproveitar aquilo que ele pode nos propiciar em termos de ganho de tempo, qualidade e produtividade.
Do operacional ao preditivo
A principal mudança de paradigma consiste em abandonar a lógica operacional para adotar uma abordagem estratégica e analítica. A IA permite que departamentos jurídicos extraiam insights de bases de dados não estruturadas – como e-mails, atas e relatórios –, transformando informação dispersa em conhecimento acionável. Também viabiliza a migração de processos manuais para modelos preditivos, que antecipam riscos, estimam probabilidades de litígio e sugerem caminhos legais eficientes.
Os benefícios dessa transição são evidentes: precisão, redução de custos, melhoria na colaboração entre times e maior capacidade de resposta a demandas complexas. Ferramentas como Contract Lifecycle Management (CLM), Enterprise Legal Management (ELM) e softwares de compliance e gestão de riscos estão sendo aprimorados com IA para oferecer visão holística de contratos, obrigações regulatórias e potenciais vulnerabilidades.
Um ponto importante é como a ascensão das novas tecnologias pode mudar a natureza do relacionamento com prestadores de serviços jurídicos. Modelos baseados em performance, com precificação por valor entregue e previsibilidade de custos, serão cada vez mais relevantes.
Liderança, cultura e o imprescindível papel humano
Nenhuma mudança dessa magnitude se sustenta apenas na tecnologia. O protagonismo de General Counsels (GCs) e Chief Legal Officers (CLOs) é essencial. São essas lideranças que devem conduzir a transformação, promovendo uma visão integrada da IA, ancorada em governança, ética e alinhamento às estratégias de negócios.
Por isso, a jornada de transformação digital das áreas jurídicas corporativas deve avaliar a prontidão tecnológica e estrutural da organização; identificar os casos de uso com maior retorno; e formar equipes interdisciplinares que reúnam jurídico, tecnologia da informação (TI), compliance e áreas de negócio. Em seguida, é preciso alinhar a IA à estratégia corporativa, implementando estruturas robustas de governança algorítmica, com foco em transparência, explicabilidade e mitigação de riscos.
No longo prazo, o sucesso dependerá da capacidade das organizações de promover uma cultura de inovação. Isso envolve investir em letramento em IA – para que os profissionais entendam como usar e supervisionar as decisões algorítmicas – e adaptar continuamente suas estruturas de governança.
Além disso, a transformação digital dos departamentos jurídicos requer uma base sólida. Dados precisam ser estruturados, auditáveis e bem governados. Políticas de privacidade e conformidade regulatória devem estar integradas desde o início. A IA, como bem lembra a publicação, não é neutra. Seus vieses, limitações e riscos precisam ser reconhecidos, discutidos e mitigados.
Nesse aspecto, a supervisão humana se mantém como elemento central. Mesmo diante do avanço de agentes autônomos, a presença de profissionais qualificados para monitorar, ajustar e validar as decisões continua sendo inegociável.
A IA não é capaz de substituir o pensamento jurídico. Ela pode ampliá-lo e contribuir para seu aprimoramento. Mas o profissional qualificado, a experiência e o olhar humano são imprescindíveis.
O que está em jogo, afinal?
Mais do que uma transformação tecnológica, o que está em jogo é a capacidade das organizações de transformar dados em conhecimento e decisões em valor. A IA pode ser o catalisador dessa mudança. Porém, o sucesso depende menos da sofisticação dos algoritmos e mais da clareza da estratégia, da maturidade da liderança e da qualidade dos dados e das pessoas que os interpretam.
Em um mundo cada vez mais regulado, interdependente e orientado por dados, os jurídicos que souberem combinar IA com visão de futuro sairão na frente. Porque, no fim, a vantagem não estará em quem adotar a IA mais rápido, mas em quem souber fazê-lo de forma mais inteligente, ética e conectada ao negócio.