Em 2021, poucas semanas antes da realização da COP26 em Glasgow, na Escócia, a KPMG publicou o índice Net Zero Readiness[1], o qual sintetiza o progresso de um grupo de 32 países no intuito de reduzir suas emissões de carbono e alcançar o net zero até 2050. Embora os resultados desse estudo mostrem que todos os países analisados, ou a maioria deles, estavam atrasados tanto no avanço de seus objetivos para alcançar emissão líquida zero quanto no estabelecimento de normas e regulamentos que favoreçam seu cumprimento – devido especialmente à falta de preparação nos cinco setores considerados decisivos para atingir esses objetivos, que são: energia e eletricidade; indústria; transporte; construção; e agricultura. Nos últimos dois anos, houve avanços na direção certa. Por exemplo, os Estados Unidos, país que sobressai como um dos maiores produtores em volume de gases de efeito estufa (GEEs), se reincorporou formalmente ao Acordo de Paris no início de 2021 e colocou em vigor a Lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act), que introduz benefícios e incentivos fiscais significativos para a descarbonização, com uma alocação de US$ 370 bilhões para programas de segurança energética e clima. A China, outra grande emissora de GEEs, tem um plano para reduzir o consumo de carvão e aumentar a produção de energia renovável em 25% até 2030. No mercado europeu, apesar do conflito entre Rússia e Ucrânia, que, entre seus efeitos negativos, teve o desabastecimento de gás natural russo naquela região, foram anunciadas políticas de apoio à descarbonização, tais como o REPowerEU, esquemas de comércio de emissões, como o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM), e a introdução de regulamentações que impedem a importação de produtos relacionados ao desmatamento. Na América do Sul, países como Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil se comprometeram, junto a outras 113 nações, na última Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28), a triplicar a capacidade de geração de fontes renováveis e a dobrar a taxa anual de melhorias na eficiência energética até 2030, bem como a gerenciar de maneira mais eficiente as emissões derivadas da queima de combustíveis e – o que é ainda mais importante – a combater o desmatamento.
[1] Net Zero Readiness Index 2021. KPMG International, October 2021. Net Zero Readiness Index - KPMG Global
Foi nesse cenário que a KPMG publicou, no final de 2023, quase como uma continuação do relatório mencionado anteriormente, o Net Zero Readiness Report, que examina em grande parte o resultado das medidas adotadas por países e setores econômicos considerados decisivos para a redução das emissões globais de GEEs, ao mesmo tempo em que analisa seu nível de preparo e sua capacidade para alcançar o objetivo de emissão líquida zero até 2050. Em termos gerais, o relatório funcionava como um compêndio ou quadro de referência para a maioria das medidas e políticas mencionadas, destacando o crescimento que a produção e os investimentos em energia renovável estão vivenciando no mundo todo, bem como as dificuldades crescentes para financiar a maior parte dos projetos voltados à expansão dos combustíveis fósseis. É de conhecimento público que o aumento da produção de energia renovável é uma das medidas mais críticas e necessárias para alcançar a meta do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura global a 1,5ºC. Neste sentido, a América do Sul é um farol para o resto do mundo, pois a região se destaca pelos seus avanços na incorporação da energia limpa à sua matriz de geração (31% de toda a energia produzida atualmente na América do Sul é originada por fontes renováveis). Além disso, os investimentos planejados em capacidade de geração podem atingir US$ 1,9 trilhão até 2050 em toda a América Latina, segundo destacou recentemente um relatório da EIN Presswire (EIN, 2024)[2].
[2] América Latina avanza hacia cero emisiones netas con el impulso en energías renovables para 2050. EINNEWS, enero 2024. América Latina avanza hacia cero emisiones netas con el impulso en energías renovables para 2050 - EIN Presswire (einnews.com)
Além do que foi mencionado nos parágrafos anteriores, os países da região estão promovendo uma bateria de medidas para facilitar e continuar liderando a transição. Por exemplo, em 2023, a Colômbia lançou o Plano Nacional de Economia Circular, um programa que busca impulsionar a reciclagem de materiais e assim reduzir a quantidade de resíduos descartados em aterros sanitários. O país, a exemplo do que ocorre no resto da região, vem desenvolvendo projetos para aumentar o uso de energias renováveis e diversificar sua matriz energética, especialmente em termos de fontes de energia solar e eólica. O Brasil, que sobressai intrarregionalmente como um dos países com os nível mais elevados de emissões poluentes, aprovou, no final de 2023, uma nova legislação que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), estabelece tetos para emissões pelas empresas e cria um sistema de compensação por meio de créditos e certificados. O país também estimula a sustentabilidade e a preservação da Amazônia e de sua biodiversidade; vem implementando políticas de combate ao desmatamento ilegal; e fomenta a agricultura sustentável e a produção de biocombustíveis derivados da cana-de-açúcar, da qual é pioneiro. Paralelamente, o Chile, que tem se destacado na adoção de energia solar e eólica na região, estabeleceu metas ambiciosas de descarbonização para alcançar emissão líquida zero até 2050. E, por fim, a Argentina vem promovendo a sustentabilidade nesses últimos anos, com foco principalmente em medidas concretas de transição energética, gestão de resíduos e conservação ambiental. Em relação à transição em sua matriz energética, cerca de 12% dessa matriz corresponde hoje a energias renováveis, e espera-se que essa cifra alcance 20% em 2025 e 30% em 2030. Simultaneamente, o governo argentino tem em operação um plano nacional para a gestão de resíduos urbanos (conhecido como Plan Nacional de Gestión de Residuos Sólidos Urbanos), que busca aprimorar a coleta, a reciclagem e a disposição final de resíduos, facilitando assim a economia circular; e políticas favoráveis à sustentabilidade em uma de suas atividades mais importantes e lucrativas: a agricultura. Nesse âmbito, estão sendo estimulados o plantio direto, a rotação de culturas, o manejo eficiente de pragas e a substituição gradual dos agroquímicos por bioinsumos.
Todas essas medidas refletem o compromisso da região com a sustentabilidade, a transição energética e o combate às mudanças climáticas, alinhando-se, dessa forma, com os objetivos globais de desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Mesmo assim, é importante ter em mente que o processo ou a transformação que a região (e o mundo) atravessa sempre trará obstáculos. Sob essa perspectiva, convém lembrar que a produção de energia renovável e a renovação das redes elétricas – imprescindível para que a energia produzida seja distribuída – afetarão inevitavelmente os ecossistemas, sua biodiversidade e as comunidades circundantes, podendo provocar (e é quase certo que isso acontecerá) reações negativas e conflitos acerca do que deve ser feito e dos impactos que isso poderá ocasionar. Da mesma forma, os países (em geral, não somente os sul-americanos) precisam aprender a gerenciar as discrepâncias entre o que é conveniente para o todo versus aquilo que convém, ou que é mais prático ou economicamente viável, no nível individual. Assim como as pessoas podem ter intenções sustentáveis, mas, na hora de adquirir um produto ou serviço, optam por aqueles que, em virtude de seus custos mais baixos, não se enquadram nessa categoria, empresas e governos podem se comportar da mesma forma. Vários países da América do Sul, como Argentina e o Brasil, incluem-se entre os mais avançados em termos de transição energética no nível global, mas também pertencem ao grupo daqueles que continuam (e continuarão) a explorar os recursos de hidrocarboneto, uma vez que eles possuem depósitos ricos desses minerais, os quais representam não somente uma oportunidade de investimento para geração de receita, mas um caminho importante para alcançar ou manter a segurança e a independência energéticas. O mesmo vale para as empresas: as práticas de sustentabilidade e os programas ESG devem estar respaldados por regulamentações que envolvam a atividade privada em um quadro normativo que as condicione a agir dessa maneira e a relatar seus progressos, já que a simples decisão corporativa pode não ser suficiente para assegurar a transição, sobretudo quando os benefícios da sustentabilidade costumam ser percebidos apenas a médio e longo prazos. Sem uma visão holística, os recursos alocados a essas iniciativas podem parecer uma despesa e não um investimento. É aí que os governos devem trabalhar e buscar acordos que coloquem em sintonia o setor público e o setor privado, comprometendo-os igualmente com a busca contínua por soluções que promovam a sustentabilidade, por um lado, e que garantam uma transição justa e ordenada para todos, por outro – ainda que isso signifique continuar explorando as energias não renováveis por um tempo, mas somente como parte de uma equação socioeconômica consensual, que permita impulsionar a nova ordem e acelerar a transição.