À medida que atravessamos um período marcado por incertezas, com uma crise económica e inflacionária, e um cenário geopolítico adverso, é crucial realizar uma análise criteriosa do panorama bancário e traçar expetativas claras para o futuro.
A revista Risco falou com Pedro Loureiro, Partner de Advisory da KPMG em Portugal, que deu a conhecer o cenário da banca nacional em 2023, as perspetivas para 2024, os desafios, as oportunidades e a complexa evolução que o mundo financeiro atravessa.
Qual o balanço que faz do setor da banca em 2023?
2023 foi um ano de transição para a banca europeia, mas principalmente para a banca nacional, onde se verificou um aumento significativo da margem financeira em resultado do aumento das taxas de juro, mas também em resultado da transformação significativa que os bancos têm vindo a realizar nos últimos anos.
Esta transformação foi muito acentuada em Portugal, com redução significativa de rácios de créditos não produtivos, melhoria dos rácios de eficiência e transformação processual/digital a diversos níveis, o que exponenciou os resultados observados.
O aumento das taxas de juro representou o principal fator de crescimento de resultados do lado dos bancos, tendo como consequência o aumento da margem financeira, isto é, a diferença entre o que o banco recebe pelos créditos prestados e o que paga pelos depósitos que recebe. É importante salientar que a banca nacional foi especialmente beneficiada com a subida de taxas de juro, em resultado da elevada presença de créditos à habitação a taxa variável nas estruturas do seu balanço.
Paralelamente, este aumento das margens financeiras torna-se ainda mais relevante, uma vez que não foi observado o aumento significativo do incumprimento, como inicialmente se previa, nem outra alteração de destaque nos balanços dos bancos.
Desta forma, o ano de 2023 foi de afirmação da banca nacional como uma referência a nível europeu e de solidificação das instituições a diversos níveis, tais como rácios de capital e resultados obtidos.
As subidas das taxas de juro reforçaram o estatuto entre as bancas mais rentáveis da Europa?
A banca nacional apresenta um conjunto de características que são diferenciadoras do resto da Europa, nomeadamente:
• Ativos a taxa variável: a banca nacional apresenta uma preponderância de ativos a taxa variável na Europa, o que, num cenário de subida acentuada das taxas de juro, resulta no aumento da margem financeira. Esta maior exposição/volatilidade à variação das taxas de juro existentes no mercado nacional é benéfica neste contexto macroeconómico, mas tem de ser observado com prudência em cenários de descida de taxas de juro;
• Manutenção dos níveis de incumprimento: ainda que o nosso sistema bancário seja mais exposto à subida das taxas de juro, principalmente no crédito à habitação, não foram observados aumentos significativos dos rácios de incumprimento. Este facto deve-se em grande parte ao adequado acompanhamento dos clientes por parte dos bancos no decorrer do último ano;
• Eficiência operacional: em resultado das transformações efetuadas nos últimos anos, os bancos portugueses apresentam atualmente níveis de eficiência operacional equiparados aos bancos europeus.
A conjugação destes fatores, entre outros, contribuiu para que a banca nacional apresente uma excelente performance a diversos níveis e se tenha tornado em 2023 como uma das mais rentáveis a nível europeu.
Qual a importância dada pelas instituições aos critérios de sustentabilidade e de que forma influenciaram a sua performance?
As preocupações ambientais, sociais e climáticas influenciam atualmente todos os setores da economia, que procuram ativamente estratégias de redução das emissões de carbono em conformidade com os compromissos assumidos e as iniciativas de transição associadas. Sendo os bancos intermediários financeiros e entidades fundamentais em qualquer economia, desempenham um papel crucial ao apoiar a transição dos seus clientes nos diferentes segmentos da economia.
Atualmente, os bancos apresentam estratégias de transição, não só para os seus processos internos, mas também para os produtos (principalmente crédito) aos seus clientes, o que eleva o sistema financeiro a um papel fundamental na transição energética nacional.
Desta forma, a temática da sustentabilidade é um dos pilares estratégicos dos bancos para os próximos anos com o objetivo de assegurar o apoio à economia na sua transição. O principal desafio existente é o alinhamento entre a estratégia financeira e a estratégia ESG (Environmental, Social & Governance) de cada instituição, uma vez que, muitas vezes, estas não se encontram totalmente correlacionadas e até podem ser consideradas concorrentes.
Considero que atualmente os critérios de sustentabilidade não influenciaram ainda a performance dos bancos no passado ano, mas é expectável que no futuro passem a ter uma maior influência como consequência do alinhamento cada vez maior entre as estratégias financeiras e ESG de cada instituição.
Quais os principais desafios para a banca nacional em 2024?
As previsões recentes apontam para um contexto económico global incerto em 2024. Isto deve-se a um conjunto de desafios, que vão desde a inflação, alteração das taxas de juro, e eventos geopolíticos nacionais e internacionais.
O setor bancário enfrenta dinâmicas complexas relacionadas com as taxas de juros, uma vez que é expectável que estas entrem num ciclo de descida e, consequentemente, causem pressão na margem financeira, na capacidade de geração de rentabilidade e nas estratégias de negócio.
Estes fatores representam um aumento da pressão no que diz respeito à manutenção de receita e resultados, pelo que alguma alteração estratégica ou otimização de custos poderá ter lugar.
Adicionalmente, será expectável que o investimento em tecnologias se mantenha equiparado, ou mesmo que seja reforçado em algumas áreas, de forma a solidificar a transformação tecnológica e digital que tem vindo a decorrer.
Noutras vertentes, destacam-se os desafios da regulamentação – mais especificamente cripto e digital assets, privacidade dos dados, IA, gestão de risco e compliance – que vão manter-se para o próximo ano, de onde saliento:
• Pressão regulatória: tendo em consideração o elevado nível de exigência regulatória a diversos níveis, o esforço e investimento para assegurar o seu cumprimento são um desafio que não pode ser subestimado.
• Transformação digital: o objetivo contínuo de concluir a transformação digital do sistema bancário e assim manter ou melhorar os níveis de competitividade continuará a ser um desafio para 2024;
• Sustentabilidade e ESG: os fatores relacionados com esta temática têm cada vez mais preponderância na gestão das instituições financeiras e, como tal, será prioritário assegurar a sua operacionalização e incorporação na gestão diária.
As fintechs estão a assumir uma posição cada vez mais relevante no mercado financeiro. De que forma podem estas alterar o paradigma das finanças tradicionais?
O aparecimento de inúmeras fintechs no sistema financeiro é factual e deverá continuar nos próximos anos em resultado das inúmeras oportunidades de mercado nacional e internacional. Os bancos tradicionais podem olhar para as fintechs de duas formas diferentes:
• A primeira forma é olhar para as fintechs como o "inimigo” e concorrentes diretos, considerá-los como alvos a abater, e desta forma continuar a fazer o que já fazem e manter o rumo da banca tradicional;
• A segunda forma é olhar para as fintechs como inspiração e aliados, tentando perceber o que fazem de bem, e transformar o banco tradicional de acordo com os sinais do mercado, que são muitas vezes transmitidos pela adesão dos clientes às fintechs. Nestes casos, o banco pode querer explorar parcerias, fazer investimentos ou até absorver fintechs.
A colaboração entre banca tradicional e fintechs pode ser o caminho para a evolução, já que o acesso a dados, a experiência com clientes e o conhecimento de mercado faz com que as fintechs necessitem de parceiros robustos para que as suas soluções sejam viáveis, não na perspetiva de serem úteis e importantes, mas na perspetiva de estarem totalmente alinhadas com as expetativas do mercado financeiro. Quando falamos de mercado financeiro falamos de clientes, reguladores e outras instituições financeiras.
Em conclusão, é verdade que as fintechs estão a alterar o paradigma do sistema financeiro tradicional, levando a que os bancos tenham a necessidade de estar atentos e de melhorarem continuamente, mas quem deu este poder às fintechs foram os clientes, já que são estes os que querem que a banca tradicional se transforme de um puro serviço, para algo alinhado com o seu atual estilo de vida.
De que forma a expectável implementação do Euro Digital vai impactar o setor financeiro nacional? Estão as instituições preparadas?
A introdução do Euro Digital, como Central Bank Digital Currency (CBDC), terá impacto no sistema financeiro, mais especificamente em todos os serviços de pagamentos nacionais e internacionais. Estamos a falar de uma evolução que irá permitir aos cidadãos efetuar movimentações financeiras sem qualquer intermediário financeiro, como hoje fazemos com o dinheiro físico, apenas através de uma "carteira digital”.
Esta disrupção no sistema financeiro será gradual, como temos observado em outros momentos equivalentes (por exemplo, a introdução do multibanco nos anos 80) e é expectável que venha a ter um impacto semelhante, em resultado da diminuição da circulação de dinheiro físico, aumento do controlo por parte do banco central da moeda digital e redução da intermediação bancária nos meios de pagamento e transferências.
A introdução do Euro Digital irá trazer vantagens para todos a diversos níveis, nomeadamente:
• Meios de pagamento: maior eficiência e simplicidade dos meios de pagamento, o que resultará na realização de pagamentos mais rápidos;
• Transferências: as transferências nacionais e internacionais serão efetuadas sem qualquer intermediário, de forma automática e mais célere;
• Controlo: maior controlo por parte do banco central sobre a moeda em circulação, uma vez que a tecnologia irá permitir acompanhar e identificar a qualquer momento onde se encontra a moeda digital e as suas movimentações;
• Redução do uso de moeda física, o que representa uma diminuição dos custos inerentes à movimentação e gestão de notas e moedas existente atualmente. A adoção massiva do Euro Digital e os seus impactos podem variar em resultado da conclusão do seu processo de testes e desenho ainda em curso, assim como toda a estrutura regulamentar ainda em desenvolvimento. Alguns países já adotaram a moeda digital, como a Nigéria (2021) ou as Bahamas (2020), onde o nível de inclusão na economia ainda é reduzido, mas com uma expetativa de crescimento.
As instituições financeiras encontram-se a acompanhar a evolução do processo por parte do Banco Central e da respetiva legislação, de forma a poderem avaliar o verdadeiro impacto da inclusão do Euro Digital na Europa.
E como é que os criptoativos desafiam os modelos tradicionais de serviços financeiros?
Os criptoativos vêm dar uma nova dimensão de oportunidades, mas ao mesmo tempo também colocam em evidência a necessidade de serviços tradicionais financeiros no que respeita à intermediação e câmbio de divisas.
Com a globalização das economias, os criptoativos permitem a possibilidade de realização de transações financeiras entre indivíduos em qualquer parte do mundo, sem qualquer tipo de necessidade de intermediação bancária, eliminando as barreiras de divisas e taxas de câmbio.
Este nível de troca direta vai permitir que operações sejam realizadas em real-time, e também vai reduzir gastos relacionados com comissões de intermediários financeiros, assim como gastos de câmbios de divisa.
A utilização das criptomoedas vai permitir a criação de novos modelos de negócio nas economias globais como no mundo financeiro e poderá trazer para a economia oportunidades de negócio que serão inovadoras e disruptivas.
Ainda há um longo caminho a percorrer para que os criptoativos sejam totalmente estáveis e confiáveis. Infelizmente, ainda existem muitos episódios recentes e desafiantes, resultantes de fraudes que envolvem criptoativos de forma indireta. Estas histórias e a falta de regulamentação fazem com que os modelos tradicionais de serviços financeiros sejam fundamentais durante um período considerável – os próximos 10 anos.
Como é que a ascensão de instituições financeiras descentralizadas (DeFi), baseadas em blockchain, desafia o modelo de negócios dos bancos tradicionais?
As “finanças descentralizadas" referem-se a um ecossistema composto por aplicações financeiras desenvolvidas sobre sistemas blockchain e podem ser definidas como o movimento que tem por base a utilização de redes descentralizadas e software em open source (código aberto), com o objetivo de construir serviços e produtos financeiros. A ideia é desenvolver e operar sobre uma estrutura transparente, como blockchains e outros protocolos peer-to-peer (P2P). As principais funções da DeFi são:
• Criar serviços bancários monetários (por exemplo, emissão de stablecoins);
• Fornecer plataformas de empréstimo peer-to-peer ou em conjunto;
• Permitir instrumentos financeiros avançados, como plataformas de tokenização, derivados e mercados financeiros. As finanças descentralizadas apresentam benefícios em comparação com os serviços financeiros tradicionais, tais como o recurso a smart contracts (contratos inteligentes), que poderão tornar os produtos financeiros mais simples e seguros.
As DeFi poderão ser responsáveis pela migração de produtos financeiros tradicionais para o universo de open source e descentralizado, o que elimina a necessidade de intermediários, reduz os custos totais e poderá melhorar a segurança e transparência das transações financeiras.
Atualmente, as DeFi não apresentam um peso significativo face ao sistema financeiro nacional, não apresentando ainda uma ameaça para o mesmo. Não obstante, a ascensão desta tipologia de instituições financeiras poderá ter impacto no modelo de negócio de bancos tradicionais nos produtos de menor complexidade (como crédito ao consumo ou sem colaterais), mas não é expectável a migração massiva de produtos financeiros de maior volume (tais como crédito à habitação e financiamentos a empresas). Esta expetativa deve-se ao facto de que estes são produtos-chave na relação entre os bancos e os clientes – todos os procedimentos associados ao processo de crédito, como a avaliação do perfil de risco do cliente, definição do preço, recuperação de crédito e ainda todos os procedimentos jurídicos e legais.
As instituições financeiras descentralizadas representam uma disrupção no sistema financeiro tradicional e apresentam alternativas para necessidades de grande parte dos clientes, o que forçosamente terá impacto no modelo de negócio dos bancos.
Os bancos estão a explorar a integração de tecnologias blockchain para lidar com a tokenização de ativos e transações em criptoativos? Diferentes bancos estão a explorar de forma diferente a integração de tecnologias blockchain porque existem diferentes visões sobre as mesmas na banca.
Existe um número reduzido de bancos que se encontra na linha da frente, e que já tem uma estratégia clara e concisa sobre a forma de integrar tecnologia blockchain e tokenização de ativos, como validar como emissões de dívida, utilizando blockchain, processos de hipotecas de bens tokenizados, aceitação de colaterais tokenizados, empréstimos sindicados com blockchain, entre outros.
Por outro lado, os restantes apresentam ritmos diferentes, existindo alguns bancos que já começaram a pensar em que processos ou serviços poderiam utilizar a tecnologia de blockchain, mas aos quais ainda falta desbravar o caminho para conseguir levar a bom porto as suas ideias, e outros que ainda não conseguiram parar para pensar estrategicamente como pode o blockchain afetar o seu negócio, ou que oportunidades pode criar.
A tecnologia blockchain e a existência de ativos tokenizados claramente vão modificar a banca tradicional de forma teórica e prática, já que existirão novos produtos e serviços, mas será também necessário modificar os elementos mais básicos nos bancos, que são os sistemas, os processos e os atuais procedimentos. Tudo isto terá um efeito no centro da instituição financeira, bem como na forma como a instituição pretende estar representada no mercado.
Entrevista a Pedro Loureiro, Partner de Advisory, a 24 de abril de 2024 na revista Risco.