A definição de Unidades Geradoras de Caixa (UGCs) representa um dos pilares fundamentais na aplicação correta da norma IAS 36 / CPC 01 – Redução ao Valor Recuperável de Ativos, especialmente no contexto de testes de recuperabilidade de ativos, como o ágio por expectativa de rentabilidade futura. Em um ambiente de negócios marcado por reestruturações societárias, aquisições estratégicas e integração de operações, a avaliação criteriosa dessas unidades se torna essencial para avaliar a fidedignidade das demonstrações financeiras e a conformidade com os normativos contábeis aplicáveis.
Conceito e Finalidade das UGCs
De acordo com o IAS 36/CPC 01 – Redução ao Valor Recuperável de Ativos, uma Unidade Geradora de Caixa é o menor grupo identificável de ativos que gera entradas, entradas essas que são em grande parte independentes das entradas de caixa de outros ativos ou outros grupos de ativos.. Essa definição, embora conceitualmente simples, demanda um exercício prático mais elaborado, uma vez que a realidade das companhias frequentemente envolve estruturas matriciais, compartilhamento de recursos e decisões de gestão tomadas de forma consolidada.
A correta identificação das UGCs é especialmente relevante quando há ativos intangíveis com vida útil indefinida ou ágio reconhecido em combinação de negócios, já que esses ativos devem ser testados anualmente — ou com maior frequência, caso haja indícios de perda por impairment — com base no seu valor recuperável.
Estrutura Gerencial x Estrutura Contábil
É comum que as empresas, por razões de eficiência operacional e governança interna, adotem estruturas gerenciais segmentadas por linha de negócio. Essas divisões costumam se refletir em relatórios internos, DREs gerenciais, indicadores de performance e metas individuais.
Contudo, a delimitação das UGCs exige julgamento significativo por parte da administração, conforme prevê o parágrafo 68 do IAS 36/CPC 01. Em muitos casos, esse julgamento envolve avaliar como a entidade está organizada para operar, bem como como ela monitora o desempenho de suas operações. Segundo o Insights into IFRS®, o manual de Contabilidade da KPMG, a definição das UGCs deve considerar os fluxos de caixa e a forma como os ativos são utilizados em conjunto para gerar receitas. A norma reconhece que a identificação das UGCs nem sempre é objetiva, e que a administração deverá aplicar julgamento com base na essência econômica das atividades.
Ainda, de acordo com o Insights into IFRS® é comum que empresas com estruturas operacionais integradas optem por definir uma única UGC para efeitos de teste de recuperabilidade — desde que as decisões sobre desempenho e alocação de recursos sejam realizadas de forma consolidada.
Nesse sentido, se a principal tomada de decisão da entidade (Chief Operating Decision Maker – CODM) é baseada em indicadores financeiros agregados, como budgets e metas de performance globais, é possível defender, com base técnica, que a estrutura de UGCs deve refletir esse nível consolidado de gestão.
Esse entendimento é reforçado quando, por exemplo:
- As projeções de orçamento (budget) são elaboradas em bases agregadas;
- As metas de performance (como Direcionamento por Objetivos - DPOs e indicadores financeiros) são estabelecidas com foco no resultado consolidado;
- Os recursos operacionais e administrativos são compartilhados entre diferentes áreas;
- Embora existam DREs gerenciais elaboradas por unidade de negócio para fins internos, não há monitoramento recorrente de margens operacionais de forma segregada para fins de tomada de decisão estratégica ou alocação de recursos no nível do principal tomador de decisão operacional (CODM), que considera indicadores financeiros consolidados.
Em situações como essas, a segmentação meramente gerencial não se sobrepõe à essência econômica da unidade de geração de caixa como definida pelas normas.
Relação com Segmentos Operacionais
É importante destacar que a definição de UGCs não se confunde com a exigência de divulgação por segmentos operacionais, conforme previsto no IFRS 8 / CPC 22 -Informação por Segmento. Ainda que ambos envolvam a análise de como a entidade estrutura suas atividades, o foco da UGC está na geração de fluxos de caixa para fins de teste de recuperabilidade, enquanto a divulgação por segmentos visa fornecer aos usuários das demonstrações financeiras informações úteis sobre a natureza e os efeitos financeiros dos negócios conduzidos.
Nem toda segmentação operacional implica a existência de múltiplas UGCs — e vice-versa. Entretanto, inconsistências entre o que é apresentado aos usuários e o que é considerado para fins de impairment podem levantar questionamentos por parte de auditores, reguladores e demais usuários das demonstrações financeiras.
Implicações no Teste de Recuperabilidade
A definição adequada das UGCs afeta diretamente o resultado dos testes de impairment. Se a estrutura for fragmentada de forma artificial — ou seja, dividindo uma unidade operacional que funciona de maneira integrada — o teste de impairment pode apontar perdas indevidas, uma vez que os fluxos de caixa deixam de refletir a realidade econômica do negócio. Por outro lado, a consolidação excessiva pode mascarar áreas com geração insuficiente de caixa, comprometendo a transparência das demonstrações financeiras.
A análise do valor recuperável — seja pelo valor justo líquido de despesas de venda, seja pelo valor em uso (via fluxo de caixa descontado) — exige coerência entre os fluxos de caixa estimados e os ativos atribuídos à unidade testada. Assim, a delimitação da UGC não deve ser arbitrária, mas refletir a realidade econômica do negócio e os princípios de governança adotados pela entidade.
Conclusão
A definição das Unidades Geradoras de Caixa deve ser realizada com critério técnico e respaldo normativo. Mais do que um exercício contábil, trata-se de um alinhamento entre a essência da operação e sua representação financeira. Em um cenário de crescente complexidade das estruturas empresariais, garantir esse alinhamento é fundamental para preservar a integridade dos ativos reconhecidos e atender às expectativas de transparência do mercado.
A KPMG conta com uma equipe multidisciplinar especializada na avaliação contábil de estruturas societárias, segmentação operacional e aplicação das normas internacionais de contabilidade. Estamos preparados para apoiar empresas em processos de reorganização, testes de impairment e revisão de ativos intangíveis com a solidez técnica e o olhar estratégico que o mercado exige.
Fabricio Abbade
Sócio-diretor de Finance & Accounting Advisory Services da KPMG no Brasil
Victor Araujo
Gerente sênior de Finance & Accounting Advisory Services da KPMG no Brasil