Com o avanço do Novo Marco Legal do Saneamento e o crescimento da participação privada por meio de parcerias público-privadas (PPPs), muitas empresas do setor têm firmado contratos de concessão – que possuem características contábeis específicas. Embora não haja mudanças recentes nas normas contábeis, a correta aplicação de normas já existentes, como a Interpretação Técnica ICPC 01 – Contratos de Concessão, a Interpretação IFRIC 12 – Service Concession Arrangements e a Orientação OCPC 05 – Contratos de Concessão — é essencial para que as demonstrações financeiras reflitam fielmente a essência econômica desses contratos. Compreender os requisitos relacionados ao reconhecimento, mensuração, apresentação e divulgação é um passo fundamental para garantir conformidade, apoiar decisões estratégicas e preparar o ambiente interno para uma atuação eficaz.
1. Contexto do Novo Marco Legal e Regionalização dos Serviços
O Novo Marco Legal do Saneamento estabelece metas para universalizar o acesso à água e esgoto até 2033, além de incentivar a regionalização dos serviços de saneamento básico, promovendo maior eficiência operacional. Esta reestruturação requer que as empresas revisem seus processos contábeis e operacionais para garantir a adequada aplicação das normas específicas de concessão. Isso inclui, por exemplo, a definição de critérios para reconhecimento e mensuração de ativos e passivos relacionados aos contratos, a reestruturação do plano de contas para refletir separadamente ativos intangíveis e financeiros, e a adoção de práticas de divulgação compatíveis com as exigências das normas contábeis e regulatórias.
2. Normas Contábeis Aplicáveis aos Contratos de Concessão
a) ICPC 01 e IFRIC 12 - Contratos de Concessão
A norma ICPC 01 – Contratos de Concessão (emitida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC e convergente com a IFRIC 12 – Service Concession Arrangements)) trata do reconhecimento e mensuração dos contratos de concessão. Estas normas são essenciais para o setor de saneamento, que frequentemente opera com contratos de concessão.
Neste artigo, destacam-se os temas de ativos intangíveis, ativos financeiros e impairment, por representarem os principais elementos contábeis associados a esse tipo de contrato e exigirem maior grau de julgamento por parte das empresas. Em relação aos contratos de concessão, a ICPC 01/IFRIC 12 estabelece orientações específicas sobre os seguintes aspectos:
- Reconhecimento de Ativos Intangíveis: Quando a recebe o direito (uma autorização) de cobrar dos usuários pelo uso do serviço, mas o poder concedente não garante pagamentos diretos à concessionária, a infraestrutura construída ou adquirida não é reconhecida como ativo imobilizado. Em vez disso, a concessionária reconhece um ativo intangível, que representa o direito de cobrar pelo uso do serviço durante o período da concessão. Esse ativo intangível é registrado pelo custo incorrido para adquirir ou construir a infraestrutura e é amortizado ao longo do período de concessão, com base no padrão de consumo esperado dos benefícios econômicos gerados.
- Reconhecimento de Ativos Financeiros: Se o contrato de concessão envolver uma garantia de pagamento pelo governo ou outra entidade pública, a infraestrutura deve ser reconhecida como ativo financeiro, mensurado pelo custo amortizado ou valor justo.
- Impairment: A norma também exige testes de impairment (perda de valor recuperável) para esses ativos, especialmente relevantes em casos onde as receitas projetadas não são atingidas.
Esses critérios são fundamentais para assegurar que as demonstrações financeiras reflitam a realidade econômica dos contratos de concessão no setor de saneamento.
b) OCPC 05 Contratos de Concessão
A OCPC 05 fornece orientação adicional para contratos de concessão, detalhando aspectos como:
- Reconhecimento de Obrigações de Investimento: As concessionárias frequentemente assumem compromissos contratuais para realizar investimentos em infraestrutura ao longo do período de concessão. De acordo com a OCPC 05, especialmente nos parágrafos 31 a 33, 41 e 43, essas obrigações devem ser reconhecidas de maneira apropriada nas demonstrações financeiras, seja como um passivo financeiro ou incorporadas ao valor do ativo intangível, conforme a natureza dos investimentos e os termos contratuais..
- Manutenção e Renovação: De acordo com o Parágrafo 44 do OCPC 05, os custos de manutenção devem ser reconhecidos como despesas no momento em que são incorridos. Já os custos de renovação ou reposição podem ser capitalizados, desde que resultem em aumento da capacidade, eficiência ou prolongamento da vida útil do ativo.
- Encargos Tarifários e Metas de Universalização: O reconhecimento de receita deve considerar os critérios estabelecidos nos contratos de concessão e as normas aplicáveis ao setor, levando em conta os fluxos de caixa esperados e a viabilidade econômica do contrato, conforme orientação do ICPC 01 e CPC 47 - Receita de Contrato com Cliente.
3. Impactos das Normas Contábeis nos Relatórios Financeiros
Diante do aumento da relevância dos contratos de concessão no setor de saneamento, a aplicação consistente e bem fundamentada das normas contábeis já vigentes — como ICPC 01, IFRIC 12 e OCPC 05 — torna-se ainda mais importante para assegurar que as demonstrações financeiras reflitam com precisão as características desses contratos, os ativos e passivos envolvidos, e as obrigações futuras. Estes são alguns dos impactos contábeis específicos:
- Segregação de Ativos Intangíveis e Financeiros: A classificação do direito como ativo intangível, ativo financeiro ou uma combinação de ambos depende das características contratuais, conforme definido pela ICPC 01/IFRIC 12. Essa avaliação impacta diretamente o balanço patrimonial e as demonstrações de resultados. Enquanto os ativos intangíveis são amortizados ao longo do período de concessão, os ativos financeiros são mensurados pelo método do custo amortizado, com base na taxa efetiva de juros.
- Divulgação de Informações sobre Obrigações Contratuais: A OCPC 05 exige divulgação clara sobre obrigações de investimento, renovação de ativos e manutenção. Isso implica que as empresas precisarão detalhar as obrigações futuras relacionadas a cada contrato.
- Adequação das Tarifas e Reconhecimento de Receitas: Os critérios de reconhecimento de receitas devem ser ajustados para refletir as condições tarifárias estabelecidas pelos contratos e reguladores, considerando fatores como reajustes tarifários e variações nas metas de cobertura e universalização.
4. Importância da Conformidade com Normas Contábeis e Regulatórias
O estudo "Qualidade da Regulação do Saneamento no Brasil e Oportunidades de Melhoria", do Instituto Trata Brasil em parceria com a KPMG, destaca que a conformidade contábil e a transparência são cruciais para atrair investimentos no setor. A adoção correta do ICPC 01/IFRIC 12 e OCPC 05 garante uma imagem financeira precisa e facilita a análise de viabilidade econômico-financeira exigida pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico).
Exigências de Transparência
Com o aumento das obrigações de transparência e compliance, as empresas devem fornecer informações detalhadas sobre seus contratos de concessão, investimento em infraestrutura e desempenho financeiro regionalizado. Este nível de transparência é essencial para a confiança dos investidores e a gestão eficaz dos recursos públicos.
5. Recomendações para Empresas de Saneamento
Para garantir compliance e minimizar riscos de inconsistência contábil, recomenda-se que as empresas de saneamento:
- Revisem e Estruturem Planos de Contas Específicos para Concessões: Criem uma estrutura de contas que segregue claramente ativos intangíveis e financeiros, obrigações de manutenção e receitas por contrato.
- Implementem Testes de Impairment e Monitoramento Contínuo: Realizem testes regulares de impairment nos ativos intangíveis e monitoramento das obrigações contratuais para avaliar possíveis reavaliações.
- Invistam em Treinamento e Capacitação: Garantam que a equipe contábil esteja capacitada para aplicar normas complexas, como ICPC 01/IFRIC 12 e OCPC 05, assegurando que as demonstrações financeiras reflitam corretamente a situação financeira e as obrigações contratuais da empresa.
- Aprimorem a Divulgação e Comunicação com Investidores: Transparência é fundamental para atrair capital no setor de saneamento. Forneça divulgações detalhadas sobre as metas de investimento, cronogramas de manutenção e políticas tarifárias.
Conclusão
O setor de saneamento no Brasil está em transição, e as novas regulamentações colocam a contabilidade no centro das discussões sobre transparência, viabilidade econômica e gestão eficiente. A adoção rigorosa das normas ICPC 01, IFRIC 12 e OCPC 05 permite que as empresas não apenas cumpram as exigências regulatórias, mas também promovam uma visão clara e precisa de sua operação.
O estudo do Instituto Trata Brasil e KPMG ressalta a importância de uma regulação contábil robusta para o avanço do setor de saneamento e o cumprimento das metas de universalização. Com uma abordagem contábil bem estruturada, as empresas podem contribuir para um setor de saneamento sustentável e financeiramente saudável, capaz de responder aos desafios de universalização e prestação de serviço de qualidade.
Fontes:
- Instituto Trata Brasil e KPMG: Qualidade da Regulação do Saneamento no Brasil e Oportunidades de Melhoria - https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/09/Release_OFICIAL_do_estudo_de_Regulacao_-_ITB_e_KPMG.pdf
- Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA): Norma de Referência para Regulação dos Serviços Públicos de Saneamento - https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/noticias-e-eventos/noticias/norma-de-referencia-para-regulacao-dos-servicos-publicos-de-saneamento-aprovada-pela-ana-entra-em-vigor-1